O Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt surgiu em 20171, no centro de São Paulo/Brasil, a partir do encontro de psicanalistas interessadas em construir uma clínica que extrapolasse os muros do consultório e se constituísse em um espaço público da cidade. Em 2016, o país sofreu um golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, e havia um clima de crescente autoritarismo, intensificado pela ascensão de discursos fascistas e reacionários.
Alguns anos depois, a escalada autoritária, somada à pandemia de Covid-19, gerou um vazio político e distanciou a prática clínica do coletivo de sua esfera territorial. A mudança para o formato online, somada ao aumento da demanda por atendimentos, gerou desconfortos e inquietações, desafiando o desejo de manter o coletivo vivo.
Em 2023 fomos convidados a compor uma iniciativa chamada Clínicas de Borda, que buscou registrar a experiência de alguns coletivos que atuam em territórios, a partir da psicanálise. Como parte dessa coleção, publicamos um zine2 pela editora n-13, no qual compartilhamos um breve histórico do coletivo, os desafios e impasses que envolvem nosso trabalho e, especialmente, um questionamento central que surgiu em 2021: a ausência de implicações antirracistas na prática clínica.
Foi nesse momeno que o coletivo se reconheceu como predominantemente branco. Esse reconhecimento foi um esbarrão no espelho: um choque de narcisismo e branquitude que antes estava recalcado em nós. Embora alguns dos membros tivessem refletido sobre questões raciais na teoria e na clínica, a falta de uma racialização coletiva contribuiu para uma sensação de esvaziamento político. Nos encontros de intervisão (espaço onde discutimos os casos clínicos e os processos grupais) e de supervisão (quando essa discussão se amplia a partir da mediação de uma psicanalista externa ao grupo), começamos a perceber que, movidos pela culpa, tentávamos resolver nossas questões raciais buscando um integrante preto para compor o coletivo, ao invés de sustentar a tensão interna que essas questões provocavam. Tentávamos uma solução externa enquanto, internamente, lidávamos com divergências radicais — e, por vezes, inconciliáveis — sobre os posicionamentos éticos, clínicos e políticos do grupo. Somente ao reconhecer e elaborar essas questões internamente, algo começou a se transformar no coletivo.
Além disso, vivenciamos no território a degradação da praça pública, refletindo o cenário sociopolítico de aumento da pobreza. Nossa proposta clínica sempre esteve visceralmente atrelada a um fazer político, porém, com as mudanças sociais somadas às reflexões raciais, de gênero e classe do/no coletivo, nos deparamos com a necessidade de refletir e atualizar nosso enquadramento político.

Uma soma significativa de questões ainda nos permeia. O que está em jogo quando nos lançamos a um trabalho sem remuneração? Essa experimentação coletiva é uma troca ou um ato de resistência? Estamos desafiando o capitalismo ou, de algum modo, nos alinhando a ele? Afinal, “que diabos estamos fazendo aqui?” Qual é, de fato, a nossa tarefa? Mais do que buscar respostas, nossa tarefa é a clínica em si, mas também o exercício do atendimento e do fazer coletivo, que nos permite questionar as problemáticas estruturais de nossa sociedade — como as intersecções de raça, gênero e classe — que nos atravessam enquanto sujeitos e também em nossa prática clínica. Ao nos deslocarmos para a praça pública, percebemos que nosso trabalho é, na verdade, um dispositivo de formação contínua para os analistas do coletivo e que amplia o tripé (análise, supervisão, estudos teóricos).
Nossa presença no território, enquanto coletivo de trabalhadores, incide sobre o laço transferencial e produz resistências mútuas. Afinal, trabalhar com o desejo também pode ser lido como um privilégio. A ideia de que todo trabalho deve estar atrelado ao dinheiro é apenas uma entre várias formulações possíveis sobre o conceito de “trabalho” que evoluiu ao longo do tempo, inclusive antes do advento do capitalismo, como sistema de produção e exploração. O trabalho não precisa ser sinônimo de exploração humana, mas pode ser entendido numa outra perspectiva. Nosso trabalho na praça não se ancora na troca monetária ou na exploração; ele se sustenta a partir do desejo de construir uma clínica no território da cidade. Atender sem a mediação do pagamento é um privilégio, que muitos de nós só puderam e podem exercer porque já transitamos por outros espaços clínicos e institucionais, o que possibilita certa estabilidade financeira. Mas como garantir que esse privilégio não se torne um critério excludente? Como sustentar um coletivo diverso e, ao mesmo tempo, sustentar esse modo de trabalho, sem reproduzir as barreiras típicas do neoliberalismo?
Quando novos membros chegaram ao coletivo, muitos deles iniciando suas práticas clínicas e/ou buscando pertencimento e formação, surgiram questões sobre as possibilidades de entrada e permanência no grupo. Estar na praça aos sábados custa tempo e dinheiro, especialmente com transporte e alimentação. Como sustentar o trabalho se a analista está em uma posição socioeconômica menos privilegiada? Como manter o trabalho se a analista mora em uma região periférica e precisa se deslocar até a praça, localizada no centro da cidade?
O coletivo não escapa às contradições impostas pelo capitalismo. Ele está inserido nesse contexto e é a partir dele que surgem os desafios que precisamos enfrentar. Contudo, acreditamos que o trabalho coletivo aponta para a desconstrução da lógica individualista e neoliberal. Isso nos leva a uma questão crucial: como pensar o acesso e a permanência interna ao coletivo, sem reproduzir os mecanismos políticos-econômicos de exclusão?
A clínica, frequentemente, é um espaço solitário — um reflexo dos efeitos do capitalismo. O atual modelo exploratório e individualista do mundo do trabalho resulta na precarização, especialmente pela saída isolada do profissional liberal. Nesse sentido, a construção de uma coletividade horizontal, sustentada pelo desejo e pelos laços de amizade, é uma forma de resistir aos modelos neoliberais, na medida em que o trabalho passa a ser referenciado pela economia pulsional, e não pela economia financeira.
Podemos dizer que pertencer a esse coletivo produz efeitos tanto em seus integrantes, quanto em suas respectivas práticas de escuta. Ou seja, além de oferecer uma efetiva formação dentro dos axiomas tradicionais — como outras atuações também o fazem —, essa configuração coletiva amplia a formação do analista para contemplar a implicação política do trabalho realizado, em um movimento de crítica e resistência sobre o sistema político vigente. Portanto, faz-se necessário a criação constante de um espaço de discussão sobre o trabalho, acrescentando à formação tradicional a capacidade de compreender e praticar a psicanálise, considerando os aspectos políticos e sociais de cada realidade social.

Nessa esteira, compreendemos o coletivo como um espaço formativo, tanto profissional quanto político e pessoal, que amplia as bases do tripé psicanalítico e reverbera nas clínicas de cada membro. Trata-se de uma possibilidade que aposta na ampliação dos conceitos sobre a psicanálise, incorporando a nossa implicação no campo político.
Não podemos mais pensar em uma formação psicanalítica que se mantenha alienada das questões sociopolíticas ou que as considere apenas em termos abstratos. Sobre isso, o tripé tradicional é insuficiente, sendo necessário ampliá-lo para um quadripé que inclua um exercício político crítico e ativo como parte fundamental da formação do analista. A ausência deste quarto pé nas formações tradicionais é o que conduz muitas práticas apenas à reprodução acrítica dos moldes neoliberais.
Nosso coletivo não é apenas um agrupamento ou organização de analistas a fim de executar a tarefa de atendimento clínico. Como dissemos anteriormente, não se trata apenas de uma economia material, mas de uma economia pulsional, do desejo e de uma micropolítica dos afetos. Mais do que um espaço de troca, esse dispositivo é um movimento de sustentação, abertura e invenção coletiva.
Porém, não fomos sempre como somos hoje. Apesar de já ter surgido como uma proposta de atuação política, em diversos momentos percebemos que aquilo que havia nos constituído até determinados momentos já não era suficiente para nos sustentar, pois a cada novo percurso que avançamos, a cada conjunto de ideias (re)elaboradas, precisamos nos atualizar e rever o que estamos fazendo. Não é possível ser estático quando se propõe ao posicionamento crítico, é preciso se reinventar e se re-implicar constantemente com mudanças que reflitam o posicionamento crítico.
Atualmente, estamos implicados em como tornar o coletivo um espaço de resistência contra a lógica da exclusão racial, buscando entender qual o nosso papel e quais as ações que podem tornar o coletivo um ambiente acessível a uma multiplicidade de analistas, para além do nosso recorte racial e econômico. Tornar o coletivo um espaço mais possível onde pessoas oriundas de diversas realidades possam pertencer e (re)construir nosso coletivo. Porém, não temos fórmulas ou respostas, mas um comprometimento ético-político. E, nesse percurso, seguimos nos perguntando: o que está em jogo quando decidimos nos lançar à praça pública?
Notas
- Membros: Adriana Marino, Ana Beatriz Vasconcelos, Ana Carolina Perrella, Anderson Santos, Aquinoã Abgail Pederzoli, Augusto Coaracy, Caetano Rudá dos Santos Morais, Camila Galvão Tourinho, Daniel da Silva Taranta, Denise Tamarozzi Mamede, Jessica Alves Lopes, Juliana Tambelli, Rodrigo Pucci, Thaina Oliveira ↩︎
- Disponível em https://issuu.com/n-1publications/docs/psican_lise_na_pra_a_roosevelt ↩︎
- Disponível em https://n-1edicoes.org/publicacoes/colecao-clinicas-de-borda ↩︎
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